quinta-feira, 24 de novembro de 2011

DUAS

A vida semeou o tempo.
O tempo floresceu no verbo.
O verbo se desfez no vento
do sopro burilando o lábio.

O lábio cometeu o beijo.
O beijo condensou os corpos.
Os corpos se fizeram mundos.
E o mundo esperou sentado.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

EPOPÉIA DO ESGOTO

Uma barata lambe os meus pés.
Ela desce.
Ela enxerga no escuro
minhas mágoas,
minhas fezes.

Ela ingere meus pedaços
de mentira,
de pigarro.
Ela beija a minha pele
carcomida sob os ralos.

Ela anda sobre as horas
vomitadas pelo acaso.
Reconhece na descarga
os meus dias infecundos.

Ela sobe pelos muros
de tijolos e recato.
Arremete cada passo
de encontro ao absurdo.

Ela tece umas redes
obscuras com os ratos.
Enaltece essas traças
cujos corpos eu expurgo.

Sua deixa é o descaso,
sua casa é o debaixo,
sua lide é a sujeira
recusada pelo mundo.

Trinta anos de chumaços
de cabelo nos separam.
E conquanto a desconheça
pelos cantos do meu quarto,
ela sabe cada verme
que aguarda meu cadáver.

Ela agora é um pronome
definido,
desinfecto,
chafurdando na limpeza
do silêncio das palavras.

E ainda desatenta
ao sujeito,
aos dejetos,
ela aceita por completo
toda a vida que eu rejeito.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

POEMA PARA UM DIA SÓ

Hoje eu morri mais cedo.
(Tenho pressa do poente.)
As curvas das horas em volta de mim.
A noite amanhecera à tarde;
O céu me observava estranho;
Você me conheceu já ido.

Ontem nascerei de novo.
Certo de não ser bem-vindo.
Tudo quase meio torto,
O dia restará no início;
As sombras restiarão meu corpo;
O tempo não fará sentido.

sábado, 7 de maio de 2011

TRAVESSÃO

Sou feito desses traços entre as coisas,
dessas coisas na metade,
dessas tardes sem depois...

A dobra é minha casa,
e a esquina me agrada
(pela curva, pelas putas,
pelo encontro de nós dois).

Pertenço aos olhares desfocados -
aos bocados me desfaço
em pedaços de borrão.

Sou feito essas traças entre os livros:
desenhando o seu caminho
sobre as letras e o vazio,
sobre a própria indecisão.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

À PROCURA DE DRUMMOND

Toma um lápis, caneta qualquer.
Haverá uma folha que espera-te em branco.
Encontra-a. Senta. Espera.
Diante dela, promete lembrar, esquecer, inventar.
Mas lembra: sê infiel!
Entende que a tinta independe de ti.
Ela vai pelas linhas que acha corretas.
Tua lágrima não mancha seu caminho liberto.
É preciso indiferença. Indifere a precisão.
Aqui não há força, vontade ou escolha.
O puro traçar: a pura poesia.

Escolhe as mentiras. Não se escreve verdades.
Encontra onde perder-se:
Um fonema brilhante, uma frase disforme, uma rima arredia -
Tudo isso é saudade, precede o suspiro e te faz inspirar.
Inspirar é preciso, não esquece!
Antes do canto, e antes do chôro, acorda os pulmões:
O mais louco dos loucos, no maior dos abismos,
Na iminência do salto, enche o peito de ar.

Escuta os teus olhos, observa a tua boca, lambe o nariz.
Torna-te olhos, ouvidos, boca, nariz,
Essa pele que olha, que ouve, que cheira
E que é, antes de tudo, teu mundo.
Não tentes sair.
Ninguém deixa essa bolha,
Essa esfera primeira de medos e culpas.
És o seu perpétuo inquilino, prisioneiro, parasita...
Escultor, acredita: tuas mão não se sujam de argila -
A argila se suja de ti.

Não movas ainda a grafite!
Espera o impulso - o espasmo do pulso.
Deixa que tua letra nasça daí,
Desse puro querer que acomete sem data.
Escreve! Alegra-te! Sorri com as letras!
Uma frase bem feita já vale uma vida.

Em poucas estrofes, teu rosto se mostra,
Dizendo verdades, arrotando bom senso.
Mas logo se esconde (repuxo da onda).
Assim verás tua lábia cair,
As palavras zombando de ti.
Mas não desistirás.
Resistirás
Até o instante correto:
O instante da raiva.

Dá voz a esse grito,
Esse surdo e oco grito
Que rói tuas entranhas e ossos.
Permite que soe, ecoe, transcenda tua pena.
Coloca-o na frente de cada parágrafo.
Repete, repete, repete enfim.

Aceita que choras (repuxo de ti).
De volta a ti mesmo,
Aceita que cansas - os versos já falham.
E após tudo isso, esse esforço socado
nessa ânsia imensa, entende:
O mundo é o mesmo,
e tu és o mesmo,
e nada mudou.

Mas vem. Contempla teu feito.
Aproxima teu rosto.
Afina tua vista. Vê:
Este pedaço de letra,
esta linha que falha,
Bem aí no final,
este fim da poesia,
retardo do traço,
Este sou eu.